por Roger Steffens
Tradução: Leo Vidigal

 
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"A música cresce na alma do homem ainda mais alto que as chamadas formas externas de religião... É por causa disso que nos tempos antigos os maiores profetas eram os maiores músicos"
Hazrat Inayat Khan, O Misticismo do Som e da Música

em dúvida, Bob Marley pode agora ser reconhecido como a figura mais importante da música do século 20. Esta não é apenas a opinião desta revista [no caso a revista americana The Beat, mas endosso também. Nota do Tradutor], mas também, a julgar pelas homenagens de veículos "mainstream" a Bob Marley [como a da revista Times e do jornal New York Times] é um sentimento de muitos outros também. A adivinhação é a sombria província dos tolos. Mas nas últimas duas décadas desde que Bob Marley se foi, ficou claro que ele é, sem questionamento, uma das mais transcendentes figuras dos últimos cem anos. As ondas desse conjunto sem paralelo de obras se irradiam para fora através do rio de sua música até um oceano de política, ética, moda, filosofia e religião. A sua história é a de um mito atemporal que se manifestou neste mundo, bem defronte aos nossos olhos incrédulos.

Diferente dos meros pop stars, Bob era tanto uma figura moral e religiosa como um dos maiores vendedores internacionais de discos. A quem se pode compará-lo? Recentemente, na capa do caderno Arts and Leisure do New York Times de domingo, o jornalista Stanley Crouch defendeu de forma comovente que Louis Armstrong seria o "artista inigualável" do século, destacando não só a sua inventividade instrumental como o seu estilo vocal, que transformou o modo como a música foi realizada e ouvida, influenciando artistas de todos os matizes desde o início da sua carreira. Mas você não vê milhares de Maoris e Tonganeses e Fijianos [e brasileiros] se reunindo anualmente para um tributo a Louis Armstrong; você não vê multidões de jovens usando camisetas de Louis Armstrong. De fato, mesmo grandes como os Beatles foram, você dificilmente vê alguém com uma camisa dos Beatles, exceto pela face comovente de John Lennon. Você poderia imaginar uma imagem de Elvis na bandeira de um batalhão de guerrilha? Quando foi a última vez que você viu uma faixa de Michael Jackson ou um sarong com Bob Dylan ou uma seda da Madonna? Tudo isso existe no formato Marley, pois sua iconografia se tornou uma nova linguagem universal, o símbolo da liberdade em todo o mundo.

A maioria dos pop stars que atravessaram o último século tinham o entretenimento como o seu primeiro e último objetivo. Não era assim com Marley. Ele era consciente do seu papel como o veículo da mensagem rastafari para a consciência do mundo exterior. Ele não ligava para as armadilhas terrenas e o que mais amava era nada mais do que descansar na terra fria de Jah `a noite, vendo o céu se revolver acima de sua cabeça, com uma pedra como travesseiro. Ele estava aqui para chamar seu povo para Jah.

Assim, não podemos comparar Marley com outras figuras conhecidas do meio musical. Como na área política, ele as excedeu, ainda que suas ações tenham feito com que ele fosse visto (e muitas vezes temido) como um líder político profundamente radical. Mas a sua era a anti-política da salvação através do amor e somente pelo amor, com uma inabalável consciência da unidade de toda a humanidade.

Pelo lado da inovação, Marley era um sintetizador multi-talentoso de novas idéias e ritmos, começando com o precoce "Judge Not", o primeiro trabalho solo no alvorecer da era do Ska, juntamente com suas experiências contínuas com a música gospel, o rhythm and blues, o rock, folk, jazz, música latina, scat singing, disco music e mesmo (em formato nunca gravado) bossa nova. Bob entendeu que o reggae tinha a magnífica capacidade de absorver todas as outras influências e ancorá-las solidamente `a bateria e ao baixo, marcando-os como o elemento essencial, o doce e sedutor segredo do seu sucesso.

Na verdade o real segredo é que a música de Marley é sobre alguma coisa. Tem um valor. A arte de Bob é a vida transformada, respondendo `as nossas maiores necessidades. E ela responde de um modo positivo a questão que Carlos Santana disse que temos que fazer antes de iniciar qualquer atividade na vida: Como isso vai fazer deste mundo um lugar melhor? Ainda que Bob tenha se tornado um artista comercial, ele não estava fazendo uma arte comercial. A sua arte transcendeu a banalidade pop. Existem muitos que juram ter sua música literalmente salvado suas vidas.

É nesse vasto número de admiradores que a obra de Bob continua a nos atrair, fazendo com que nós consigamos sentir a sua óbvia imortalidade, mesmo deste ponto de vista próximo. Elvis Presley pode ter sido o maior ícone do rock de todos os tempos, mas teriam as suas canções (nenhuma, aliás, escrita por ele) dito mais do que o clichê pop? Bob Dylan pode ter sido o mais respeitado poeta da sua geração, mas as suas letras, muitas vezes escritas de modo deliberadamente obscuro, não se deixam traduzir claramente, limitando o seu apelo para o público que não fala o inglês. Marley, por outro lado, refinou a arte de suas letras até uma perfeição sólida, usando a linguagem das ruas para atingir as estrelas. As suas palavras eram tão perfeitamente simples que adquiriam eloqüência. Hoje, suas histórias elementares podem ser relatadas e entendidas por pessoas de qualquer lugar que sofram, que amem e que anseiam por redenção. Em outras palavras, como qualquer um de nós.

A pronta adoção da erva por Marley e o menear cativante de suas tranças, que cresceram mais ferozmente assim que os anos 70 se esvaíram, contribuíram para a sua imagem de rebelde `a toda prova. Era tratado como uma divindade por jovens desafiadores e revolucionários rodados, que o reconheciam como um deles, adotando-o em Harare durante a independência do Zimbabwe e enviando para ele mensagens de solidariedade, das selvas peruanas até os esconderijos do Himalaia.

Assim parece, ao menos para este que aqui escreve, que Bob Marley é a escolha mais clara para ser reconhecido como o Artista do Século 20, ao menos dentro dos limites da música e provavelmente mais além. Eu agora prevejo com confiança imprudente que as melodias de Marley ainda prevalescerão por centenas de anos no futuro acima de qualquer compositor que tenha vivido. "No Woman no Cry" ainda limpará as lágrimas da face de uma viúva; "Exodus" ainda irá levantar o guerreiro; "Redemption Song" ainda será um contundente grito pela emancipação de todas as tiranias, físicas e espirituais; "Waiting in vain" ainda irá seduzir e "One Love" será o hino internacional de uma humanidade mestiça vivendo em unidade, em um mundo sem fronteiras, além das crenças, onde todos terão aprendido enfim a se reunir e se sentir bem.

No fundo do coração dos corações, Bob Marley ouviu a harmonia dos céus e compartilhou este som celestial com o homem `a procura de Deus que existe em cada um de nós.

Alguns outros que sentem o mesmo atenderam ao nosso chamado para compartilhar suas memórias e observações a seguir. Nem todos concordam nos detalhes, mas o respeito que cada um deles sente por este artista que aparece uma vez na vida fica aparente em cada palavra. Estamos todos enobrecidos por nossa proximidade com Marley e sua arte, suas eternas canções de liberdade.

Roger Steffens é um pesquisador, colecionador e divulgador da obra de Marley e do reggae em geral. Ele também é um veterano radialista e locutor, além de editor especial da revista americana The Beat para a edição anual da mesma dedicada a Bob Marley, de onde extraímos este artigo (da edição do ano 2000) e os trechos de depoimentos publicados abaixo, tudo sob sua permissão.

Depoimento de Tony Chin

"Bob Marley é hoje maior do que ele mesmo. Ele se tornou um fenômeno fora da Jamaica, aquele pequeno rasta que pegou a música e a espalhou pelos quatro cantos do mundo. Cada pessoa neste mundo que se envolve com música tem algo de Bob. Você pode ir para a floresta selvagem, pode subir a maior das montanhas e perguntar quem é Michael Jackson ou presidente dos Estados Unidos e ninguém saberá, mas se você perguntar por Bob Marley, eles saberão. A música e as palavras de Bob viverão por muitas gerações. Elas nunca irão se deter.

O que as faz eternas? É a vida: suas letras continuam vivas. Suas palavras são como profecias, como se ele fosse o Nostradamus da música. E as pessoas que não o viram ao vivo perderam um dos maiores shows já vistos, porque quando Bob estava no palco cantando, ele era verdadeiro. Ele não estava fazendo uma performance, ele era real na sua música e alcançava as pessoas, porque ele realmente acreditava no que estava cantando. Ele não estava tentando impressionar ninguém, estava levando sua mensagem adiante, fechava os olhos e sentia o que estava cantando.

A primeira vez em que encontrei Bob Marley foi quando o produtor Lee Perry me levou ao estúdio Randy's em Kingston para gravar "Sun is Shining". Os três estavam lá, Bunny, Bob e Peter. Foi algo...quando aqueles caras cantavam, eram fenomenais, como algo que você nunca tinha visto antes. Os três juntos faziam harmonias perfeitas. Bob e eu ficamos um pouco tensos um com o outro, porque eu era jovem então e não conseguia tocar os acordes direito no violão. Bob era perfeccionista na música e ficava frustrado comigo e acabamos brigando um pouco por causa disso. Mas Peter e Bunny o acalmaram, a faixa foi gravada e Bob e eu nos tornamos bons amigos depois daquilo.

Ele era um ser humano também. Ele amava muito as mulheres, mas era muito sério com a sua música. Lembro-me de um dia quando ele e Glen Adams, o tecladista dos Upsetters, estavam em Trenchtown sentados em um muro de uma casa comigo. Ele estava fumando um grande spliff. Ele tinha trabalhado com Johnny Nash naqueles dias e estava falando sobre como os produtores o roubavam, toda essa questão, e como não se podia confiar neles.

Ele estava entre meus artistas favoritos, os que me inspiraram, porque suas palavras batiam no lugar certo. Ele não era o melhor cantor do mundo, mas havia algo nele que era inexplicável. Ele foi mandado aqui pelo próprio Deus para apresentar uma obra. Ele é a minha inspiração número um no reggae agora e também para muita gente em todo o mundo. Ele fez com que muitos jovens e o povo do reggae tivessem o seu ganha-pão por causa da sua obra. Foi ele que fez o reggae ser o que é. Ele é verdadeiramente o rei do reggae."

Tony Chin é guitarrista da importante banda Soul Syndicate, cujo trabalho pode ser encontrado em incontáveis sucessos do reggae

Depoimento de Luciano

Vejo o irmão Bob Marley como um ícone para toda a fraternidade musical, como um modelo a ser seguido, como um irmão, um professor, um confortador para "I & I" [nesse caso, para mim-nota do tradutor], porque nestes tempos duros porque ele diz "I & I não se preocupe pois tudo vai dar pé" [Luciano está citando a letra de "Three Little Birds"]. Por isso fico contente por sua realeza, porque se o irmão Bob nunca tivesse tentado carregar a bandeira e mantido ela a tremular "I & I" não poderia estar aqui hoje cantando. Por isso agradeço. Ele será sempre o homem do século, porque rastafari vive e reina para sempre e sempre no coração de toda carne. E para aqueles que acreditam e têm fé, Jah se manifestará. Que Jah os abençoe!

Luciano, uma das luzes mais brilhantes do reggae consciente, percorre o mundo cantando e orando a Rastafari.

Depoimento de Junior Marvin

A revista Time escolheu Exodus como o álbum do século. Eu me sinto muito honrado de ter feito parte daquele álbum. E eu lutei por aquele álbum. Você se lembra, eles mixaram o álbum e "I & I" não gostei da mixagem e todos disseram: "Livre-se dele". E Chris Blackwell me apoiou e Bob me apoiu e nós remixamos o álbum gastando 60.000 libras, o que seria quase 100.000 dólares. E Bob aproveitou essa chance e o disco se tornou um sucesso na hora, ficado nas paradas inglesas por mais de dois anos. Então me orgulho muito de a) ter falado a verdade sobre o que sentia e b) por isso ter compensado, graças a Deus.

Não há dúvida sobre o fato de que Bob Marley é o artista do século 20. Não há nenhuma dúvida quanto a isso! Ele tirou toda a sua inspiração da Bíblia e disse uma vez que quando se é jovem deve-se procurar Deus. Porque quando você envelhecer Ele tomará conta de você. Ele buscou Deus quando era jovem e agora Deus está cuidando dele. A mensagem está lá para todo mundo, devagar e sempre: "Eles vão se cansar de ver nossa face, não podem nos tirar da corrida [Dem a go tired fe see we face, dem can't get we out of the race"].

Fique certo de que todos sabem que o pai de Bob era um homem branco e que sua mãe era uma mulher negra da Africa/Jamaica. E que seu propósito e sua vida era "one love", e ele dizia:"Se não conseguir fazer com que as pessoas se unam, negros e brancos, nessa vida, então não quero essa vida". Era isso que Bob dizia. Então deixe que todos saibam que isso não era uma questão de cor. Era uma questão de Deus, somos todos Suas crianças e isso é o que temos que promover-união, não importa a cor ou credo. Fazer com que todos se unam, porque estamos aqui para ajudar uns aos outros e estar a serviço de uns aos outros em nome de Deus, quer você o chame de Jah ou de qualquer outro nome, você não conhece a face de Deus. Deus não tem cor. Deus diz que Seu nome é Amor. Então temos que praticar o amor, o amor incondicional.

Junior Marvin, antigo guitarrista solo da Wailers Band, fez estas declarações como parte da maratona Bob Marley da radio WKCR-FM da Universidade de Columbia, EUA

Depoimento de Linton Kwesi Johnson

Penso que podemos certamente argumentar sobre Bob Marley como o artista do século porque não posso pensar em nenhum outro artista cujo impacto tenha sido tão amplo e tão profundo. Porque a mensagem de Bob não serve apenas aos países de Terceiro Mundo, onde ele foi o primeiro superstar vindo do terceiro mundo. Não é apenas aqui, é em todo o lugar. Na Europa, nos Estados Unidos, no Japão, em todo o mundo. E não consigo pensar em outro indivíduo que falasse como ele sobre consciência, coisas que têm a ver com a nossa realidade social, como a gente vive e a qualidade da justiça que obtemos em nossa sociedade, todas essas questões. E além disso tudo, ainda cantar lindas e revigorantes canções de amor. Então ele nos deixou um legado sem paralelo na história da música popular. Sua música não era apenas o reggae, porque ele incorporou muitas outras influências. Era quase jazz e havia também muito de blues acontecendo ali. Ele conseguia fazer uma ponte entre diferentes culturas. Ele era um perfeito exemplo de como a música pode ser um grande nivelador e como a música pode unir as pessoas.
Se uma dessas canções pudesse viver por mais de cem anos seria, claro, "Redemption Song". É um tremendo hino que fala das experiências históricas de muitas pessoas. Não apenas do povo negro, mas pessoas que tiveram um histórico de opressão, que foram dominados por outros por séculos. "Waiting in Vain" é a minha canção de amor favorita, é a mais revigorante canção de amor que já ouvi. Toda vez que a ouço, ela soa como se tivesse sido gravada ontem mesmo. É tremendo.

Linton Kwesi Johnson, extraordinário dub poet e ativista social, continua seu trabalho crucial de sua base em Londres.

Depoimento de Carlos Santana

Bob passou de rio a oceano. Quando nós tocamos em Gothenberg, Suécia, tocávamos a música de Bob Marley como um aquecimento musical antes de nossos shows, e o público cantou junto, eles sabiam cada palavra. Quando tocamos em Cancun, no México, onde o povo descende dos índios das pirâmides, como os incas, maias, eles cantavam as músicas, também conheciam as letras.
Jimi Hendrix e Bob Marley são dois incríveis presentes do século vinte para a ampliação da consciência da humanidade e, o mais importante, nos fizeram conscientes da nossa própria compaixão. Certamente, em todos os livros e vídeos que vi de Bob, existe muita compaixão em seus olhos e é muito contagioso. E raro. Porque então você quer ser daquele jeito, você aspira a ter aqueles maneirismos. É a sua alma chamando por outra alma. Fisicamente temos que lidar com seu corpo em tipo de circuito homem-mulher, mas no coração o que existe é energia pura.

O seu chamado está se espalhando porque, `a medida que entramos no novo milênio, suas canções se tornam hinos que as pessoas podem usar para construir um novo mundo. Ele tinha uma visão, como Martin Luther King e John Coltrane, de um mundo sem bandeiras, sem fronteiras, sem dinheiro. Penso que sua música e sua mensagem nos lembram que outro ciclo está chegando onde nós não iremos mais depender de coisas primitivas como patriotismo, dinheiro, cercas, quando começaremos a usar coisas envolventes, como confiança, compaixão e harmonia.

O compositor e guitarrista Carlos Santana, que em 2000 ganhou oito Grammys pelo álbum Supernatural, considera-se como um dos maiores fãs de Bob Marley.

Depoimento de Gayle McGarrity

Como uma antrópologa"batalhando na Babilônia", ouço o nome de Bob Marley e vejo sua imagem retratada em paredes, posters, muros de comunidades decadentes na periferia, projetada em camisetas, objeto de pinturas e gravuras, em todo o lugar, de Cartagena, na Colômbia, a Zagreb, na Sérvia (antiga Iugoslávia). Ouço seu nome repetido com reverência da Polônia ao Peru, de Cuba a Israel. Ouvi suas canções sendo tocadas quando caiu o Muro de Berlim, quando Israel assinou o acordo de paz com os palestinos, quando um membro do U2 reuniu facções inimigas na Irlanda (da mesma forma que Bob juntou Manley e Seaga no One Love Peace Concert em meados dos anos 1970).

O que há em Bob Marley que o fez ser amado por tantos, de países, culturas, raças, religiões e classes sociais tão diferentes? Relembro da primeira vez que o encontrei. Eu estudava em uma escola na Inglaterra e vinha a Jamaica passar o Natal. Um grande amigo, Dickie Jobson, passou por minha casa em Saint Andrew e me falou de uns caras de Trench Town. Tendo crescido em um bairro de classe média alta como St. Andrew, nunca tinha passado nem perto de Trech Town. Lembro-me de tê-los visto no quintal perto da casa de Bob, conversando com Dickie. Seria apenas sete anos depois que encontraria com ele de novo sob circunstâncias muito diversas-através de sua então namorada, a afro-americana Yvette Morris Anderson-na casa da Hope Road. [...]

Tive experiências com as muitas facetas de Bob: o sectário membro dos dogmáticos e intolerantes Doze Tribos de Israel (uma igreja rastafari), que deram a Bob um profundo senso de comunidade espiritual; a sua "alma rebelde" de "rude boy", que gostava de ficar entre os "irmãos", o que incluía homens tão diferentes como Skill Cole, Gille Dread, Rennie, Tek Life, Mikey Dan e Neville Garrick; o pan-africanista e nacionalista negro, que podia ficar horas conversando e argumentando com homens como Joe Steblecki, o então rodesiano que depois inspirou Bob a ir ao memorável Concerto da Independência no Zimbabwe; o sensível e carinhoso conquistador, que amou todas as suas mulheres de um jeito polígamo quase africano, e que não era nada do implacável mulherengo retratado por muitos. O Bob que podia amar mulheres tão diferentes como Cindy Breakspeare, Esther Anderson e Rita Marley; o revolucionário, que era atraído pela revolução cubana, mesmo depois de os marxistas cubanos terem inegavelmente ajudado a depor e assassinar o deus/homem que ele chamava de Pai, Haile Selassie I; o intensamente religioso Bob, que ficava `a vontade tanto com os [cristãos] coptas quanto com os "Doze Tribos", mas que tendia a deixar todas aquelas questões teológicas para aqueles que ele erroneamente achava mais articulados do que ele mesmo. [...]

Bob foi muitas coisas para muitas pessoas e seu espírito vive, na resistência dos maoris `a repressão dos europeus neozelandeses, na intensamente mística Austrália dos aborígenes em sua luta pela sobrevivência na moderna nação australiana, nos índios de todo o continente americano, especialmente os do norte, que cantaram a vibração do "Natural Mystic" [a autora se refere `a banda de reggae Native Roots, formada por índios norte-americanos; Nota do Tradutor], nos rastas e nos dreads do caribe oriental, que lutaram contra condições quase fascistas em Dominica e Granada nos anos 1970, nos Miskitu e Creole da Nicaragua, de ascendência negra, na sua luta pela autonomia política e econômica, nos poloneses e outros jovens da Europa Oriental, que lutaram contra a hegemonia soviética nos velhos tempos da Guerra Fria, nos caboverdianos que conseguiram escapar do colonialismo português [e eu acrescentaria, nos movimentos anti-globalização que sacodem o planeta desde 1999 em Seattle, nos sem-terra, nos guetos e favelas do Brasil, nos cocaleros da Bolívia e outros movimentos populares representados no Fórum Social Mundial;N.T.].

Uma chave crucial para o entendimento do destaque inescapável de Marley como um ícone cultural internacional é o reconhecimento de como, através da história, indivíduos "marginais" como ele, isto é, aqueles nascidos de pais separados por diferenças significantes de raça e classe, muitas vezes se acharam catapultados para a linha de frente dos movimentos de seus povos por uma transformação radical e revolucionária. Homens como Augusto Cesar Sandino e Carlos Fonseca Amador na Nicarágua, Toussaint L'Ouverture no Haiti, Frederick Douglass e Booker T. Washington nos Estados Unidos. É precisamente por isso que eles estranhamente encarnaram as lutas dialéticas e as contradições dos contextos sociais colonizados de onde emergiram. Lidando com as fronteiras entre extratos econômicos e sociais disparatados, estes homens desenvolveram uma visão intuitiva da realidade social-indo além das percepções daqueles constrangidos pelos estreitos confinamentos de limitados meios sociais ou subculturas.

O espírito de Bob me mantém ativa quando sinto que a Babilônia está me esmagando, quando minha alma se cansa da luta. O seu sorriso majestoso, sua necessidade quase infantil de amor e aceitação, passam como um flash por minha consciência de tempos em tempos. Bob Marley era sem dúvida o perfeito músico e compositor. Suas palavras tocaram e transformaram as vidas dqueles que não falam uma palavra de inglês, ainda mais de "patois". Bob Marley vive, como o Artista do Século!

A Dra. Gayle McGarrity é uma acadêmica jamaicana, hoje professora em Boston, nos Estados Unidos.

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