Peter Tosh


 

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O "Making of" da caixa "Honorary Citizen"

Por Roger Steffens

A caixa de Cds mais completa já dedicada ao homem perigoso do reggae, o honorável Peter Tosh, foi um trabalho realizado com amor e dedicação por vários profissionais, capitaneados por Pauline Morris, prima do artista, e Roger Steffens, um dos maiores pesquisadores, colecionadores e divulgadores da obra dos maiores mitos do reggae em todo o mundo. Roger nos deu a permissão direta para traduzir este artigo, em que ele mostra todos os detalhes sobre a produção da caixa, para que todos tenham uma visão de dentro, rica em detalhes, sobre como um trabalho deste porte é realizado.

Em Fevereiro de 1993 a idéia de uma caixa retrospectiva de Peter Tosh já estava atrasada há muito tempo. O marcante quebrado-mas-nunca-curvado ídolo do reggae havia sido assassinado em setembro de 1987 na cidade de Kingston, pouco depois do lançamento de 'No Nuclear War', seu primeiro álbum em quatro anos. O filme Stepping Razor/Red X, o cortante documentário sobre "o homem, a música e o assassino" teve a sua estréia em Los Angeles em março de 1992, quando conheci Pauline Morris, prima e administradora do patrimônio de Tosh. Retornando para os Arquivos do Reggae 1 depois da exibição, Pauline e eu vimos algumas centenas de horas de gravações de shows e entrevistas do Bush Doctor.

– Onde está, perguntei a ela, a caixa de CDs de Peter Tosh que daria sentido a tudo o que ele fez?.

Ela respondeu:

– Nós deveríamos trabalhar nisso juntos. Porque você não me dá uma lista do que deveria ter nela?

Bem, pensei, com meu cérebro em efervescência, obviamente a caixa teria que conter a nata dos compactos ainda não compilados dos vinte cinco anos de produção de Peter, todo aquele material maravilhoso que nunca havia visto a luz do dia fora da Jamaica. E todos aqueles shows desafiantes, com discursos provocadores e versões extensas dos seus sucessos, o melhor que dele havia sido preservado. E, argumentei, deve haver algum material deixado para trás que não conhecemos e que poderia temperar ainda mais as coisas.

E foi com isto em mente que, em fevereiro de 93, Pauline e eu abordamos a gravadora Columbia em Nova York, casa dos dois primeiros álbuns de Tosh, para fazer nossa oferta. Deixamos a reunião com um acordo verbal e preparados para começar o projeto.

– Nós realmente acreditávamos que tínhamos um acordo naquela época, lembra-se Morris no quartel-general do selo que Tosh fundou, a Intel-Diplo, em Nova York. – Mas então as comunicações foram rompidas e eles nem mesmo atendiam os meus telefonemas. Depois de vários meses nessa situação, decidi vender o projeto para outros e tivemos outra grande gravadora interessada em conversar. Foi quando conheci Gary Katz, o produtor de todos aqueles álbuns do Steely Dan nos anos 70. Ele era um grande fã de Peter e queria ajudar a realizar o projeto. Ele nos trouxe uma rica experiência, seu nome, seus contatos com todas aquelas diferentes cabeças das grandes gravadoras. Ele achava que a Columbia ainda era o melhor lugar para se tentar e ele ajudou-me tremendamente a conseguir que o acordo fosse pelo caminho certo. As negociações levaram mais dois anos. A gravadora tinha que determinar, antes de tudo, se seria apenas um lançamento americano ou se seria lançado em todo o mundo. Mais tarde tomaram a decisão certa, de que ele seria distribuído globalmente.

Uma vez que os contratos foram assinados, Pauline teve que rastrear as fitas que estavam sob o poder da prefeitura de Nova York, que as havia retirado do apartamento de Tosh, na Rua 97 Oeste, depois do seu assassinato. O material estava guardado em um depósito, em condições tão precárias que Pauline e Gary perceberam que elas eram inúteis e que o modo como elas foram embaladas as havia destruído.

– Foi quando me lembrei, relata Pauline, que eu mesma tinha dúzias de fitas da turnê de Peter em 1982, a única que ele fez com Donald Kinsey, Fully Fullwood e Santa Davis, então levei duas semanas ouvindo a tudo e anotando, fiquei muito contente de ter lembrado dessas fitas.

Finalmente, sob a direção de Don de Vito, o vice-presidente de A&R da Columbia, que reconheceu de imediato o significado do projeto e foi uma apoiador entusiasta desde então, o trabalho começou de verdade. Katz pediu a Pauline que ouvisse as fitas dos shows novamente, desta vez no estúdio de Katz e de Donald Fagan, do Steely Dan, chamado River Sound. Katz, um veterano de mais de 30 anos na indústria fonográfica, é um líder discreto cuja energia é concentrada e constante, mas disfarçada pelo ambiente relaxado que mantém ao seu redor. Mas quando fala de Tosh, a sua voz típica do Bronx cresce de volume de forma inusual:

– Ter a chance de ouvir a centenas de fitas, de todos os estilos, ao vivo, de estúdio e compactos antigos revelou para mim que o que aparece constante no trabalho de Tosh, atravessando a tudo, é a paixão pela sua própria integridade – musicalmente, liricamente e filosoficamente. O modo como ele combina estes elementos para produzir música, tudo isto, a cada etapa, simplesmente transpira esta paixão.
Então – ele acrescenta – qualquer um que ouvir os vocais da versão ao vivo de 'Get up Stand up', ou o seu discurso sobre as sete pragas que estão vindo, irá ouvir essa paixão que quase ninguém supera, todo o seu impacto. Não apareceu nenhum artista que se comparasse a ele desde que Tosh morreu. Ninguém. É como se ele tivesse estabelecido um padrão elevado demais.

Foi preciso uma enorme dedicação de tempo e paciência para repassar todo o material disponível. Ainda assim não havia nem mesmo um traço de tédio quando Katz explicou:

– Pauline e eu ouvimos 85 shows em duas semanas na primavera de 96. As sobras de estúdio não se revelaram úteis ou significativas como este outro material – elas eram apenas versões e mixagens alternativas para as faixas que estão nos álbuns oficiais.

Quando todas as estas caçadas terminaram, fui chamado da California em junho de 96. Nossa primeira tarefa era pinçar as melhores versões ao vivo entre diversas interpretações alternativas. Como Bob, Peter muitas vezes usava os seus shows para propósitos sonoros desconhecidos para quem apenas os ouve na gravação. Certas performances realizadas em Calgary, Boulder ou Detroit se destacavam particularmente e todas foram incluídas na caixa, como as cortantes excursões ao vivo por 'Glass House' e 'Not Gonna Give up' e outros clássicos. Como as mais impressionantes e longas partes de qualquer show de Tosh eram os seus sermões ocasionais, procuramos por algo apropriado, achando finalmente uma fita gravada no Country Club de Los Angeles, no subúrbio de Reseda. Nele Tosh desenvolve uma diatribe (ou como chamava Tosh, uma 'live-a-tribe') de gelar o sangue sobre Sodoma e Gomorra e as sete pragas que iriam recair sobre 'Hell A' 2.

– Quando você veio com seu projeto, Katz me contou, eu queria que nós três achássemos de 12 a 14 performances que iluminassem a musicalidade e a paixão de Tosh. Tenho certeza que garimpamos as mais preciosas. O que eu queria mais era achar aquela 'performance mágica'. O carma e a vibração de cada noite, o sentido de carma teve um papel em cada performance.

Nosso próximo trabalho era começar a separar, entre dúzias de compactos jamaicanos inéditos que estavam entre os mais difíceis para se escolher, aqueles que iriam preencher o disco de abertura da coleção. Nossa tarefa havia sido facilitada pelo recente lançamento do Cd 'The Toughest', da gravadora Heartbeat, uma antologia com praticamente todas as faixas em que Tosh havia feito a primeira voz da época de Coxsonne Dodd no Studio One, a primeira gravadora dos Wailers, onde ele estava naquele tempo. Então não seria necessário repetir nenhuma daquelas faixas. Começamos com a fase Wail'n Soul'm quando os Wailers fundaram este que era o seu próprio selo, no final de 1966. 'Pound get a Blow', uma das primeiras faixas produzidas por Peter, Bob e Bunny, foi escolhida. Assim como as extremamente raras 'Fire Fire', 'Black Dignity' (um sóbrio rasta-rap falado em amárico e inglês), 'Here comes the Sun' (com Peter fazendo uma cover dos Beatles e soando como Richie Havens), 'Here Comes the Judge' (com Joe Gibbs retratando alguns dos maiores escroques da história), e também 'Lion' (uma companhia para 'Iron Lion Zion', de Bob). Os altamente criativos dubs de Peter não poderiam ser esquecidos – e tanto 'Legalize it' quanto 'Vampire' são representados pelo lado B de seus compactos, repletos de sons de morcegos, bestas uivantes e vítimas desesperadas. E apesar de ter sido banida da jamaica por obcenidade, não poderíamos deixar 'Bumbo Klaat' passar batido.

O terceiro e último disco, o dos grandes sucessos, não era menos desafiador. Levando em consideração a grande quantidade de coletâneas de Tosh lançadas pelas grandes gravadoras, que já haviam compilado as faixas de seus álbuns, dispomos uma mistura que alternava as faixas mais radicalmente militantes com os seus cantos mais sensualmente espirituais. Entre elas, preenchemos os intervalos com alguns trechos de entrevistas gravadas de Tosh.

A cereja do bolo veio na última tarde de nosso trabalho, quando recebemos uma ligação do Dr. Lowell Taubman, um colecionador de reggae de apetite voraz.

– Será que os rapazes estariam interessados em ouvir alguns solos acústicos de Tosh de meados dos anos 70 que achei, ele perguntou, meio brincando.

Respondemos que ele deveria vir até o estúdio imediatamente.

– Achei este material na Internet, anunciou o Dr. T. quando chegou. São cinco faixas de Peter apenas com o seu violão gravadas em uma rádio de Chicago. Acho que são muito boas.

Depois comprovamos que ele as estava subestimando. A fita, gravada na emissora WXFM, uma rádio comunitária, foi originalmente produzida por um Dj bastante conhecido chamado Saul Smaizys em uma fumacenta tarde de verão, durante a turnê de 'Legalize It'. Tosh estava bem relaxado, oferecendo versões inesquecivelmente belas de canções como 'Fools Die' e 'I am That I am'. Mas foi a sua apaixonada versão de 'Get up Stand Up' que entrou na caixa, dando aos ouvintes a chance de ouvir um lado de Tosh que apenas um punhado de amigos havia testemunhado.

Quando retornei para casa, comecei o processo de ouvir e anotar cada fita de entrevista com Peter que havia feito desde meados dos anos 70 e rever duas pastas de recortes de reportagens, o que levou duas semanas. Uma coisa me interessou em particular. Apesar do grande número de pessoas que pensam ser Peter um dragão que fumava ganja demais, as coisas que ele dizia e fazia tinham sentido praticamente em todo o tempo. A sua lógica era concentrada em lugares específicos, tão óbvia que ele podia ridicularizar a Babilônia apenas constatando os fatos mais aparentes. E a alegria com que ele desconstruía a linguagem, muito antes do termo entrar na moda. Ele chamava a monarca do odiado Império Britânico de "Queen 'Ere-lies-a-bitch" e Michael Manley de "Crime Minister who shits in the House of Represent-a-thief" [Nota do Trad. - tratam-se de trocadilhos intraduzíveis, mas se for o caso vale a pena tentar entendê-los com a ajuda de alguém mais versado em inglês]. De fato incluímos uma seção inteira de trocadilhos no livreto que acompanha a caixa, sob o título de "Words of the Herbalist Verbalist".

O laborioso processo de limpar as faixas começou quase imediatamente e continuou durante o tempo em que este artigo foi escrito, cerca de dez meses depois das sessões no River Sound. Na gravadora Columbia/Legacy, Adam Block era o diretor do projeto e diretor de marketing:

– A Legacy é o selo da Columbia Records dedicado aos relançamentos e reedições e estamos realmente orgulhosos de termos a caixa de Tosh aqui. Sentimos fortemente que Tosh é um artista que nunca teve o reconhecimento devido e que isso seria garantido por um lançamento como este. Somos confiantes na relevância deste lançamento fora dos Estados Unidos e sempre achamos que ele deveria ser feito, e feito com qualidade, para se tornar definitivo. Este é o nosso objetivo. Este é o lançamento prioritário para nós neste verão, garantiu ele.

O livreto foi dividido em duas partes. Reuni os detalhes biográficos, me baseando pesadamente nas múltiplas entrevistas de Tosh, assim Peter de fato conta a sua própria história. Então o meu parceiro Leroy Jodie Pierson e eu nos organizamos para fazer as notas sobre cada faixa, revelando informações sobre as datas das gravações, singularizando as canções e os motivos por trás de cada composição. O extenso livreto é o mais próximo que já tivemos de uma biografia de Peter e ele nos fez perceber que grande livro seria este, que apenas começamos a escrever.

O designer da caixa é o premiado artista Mark Caparosa, graduado na universidade Carnegie Mellon e na escola de design de Rhode Island, cujos servicos já foram usados por companhias como a Time-Life, Harley Davidson, a vodka Absolut e dúzias de outras grandes empresas.

– Conheci Pauline há quatro anos – ele relembra –, e ela gostou do meu trabalho e me disse que estava determinada a me tornar parte do projeto. Ela sempre insistiu na minha participação no design gráfico, o seu comprometimento comigo e o meu trabalho me alegraram enormemente. Em um negócio tão inconstante quanto o da indústria fonográfica, é bom ver alguém botando fé em outra pessoa e mantendo as suas convicções. Em 'Honorary Citizen' não tive nenhuma das restrições criativas que são impostas em outros trabalhos. Para a capa escaneei todas as imagens que pude, e, criando em cima do reggae, sobrepus e colori as imagens. Pesquisei a arte da Etiópia e realmente me esforcei para incorporar o máximo de ícones e desenhos. Queria que todo o livreto tivesse aquela qualidade rústica e ingênua.

O resultado é tanto autêntico como pleno de colorido.

Honorary Citizen foi lançado em julho de 1997, um tributo apropriado para uma das figuras mais duradouras e lendárias do reggae.

Nota: uma coisa que Roger não contou é que uma das fotos usadas no livreto foi tirada no Brasil, no show do Anhembi em março de 1980, e foi providenciada pelo produtor e entusiasta do reggae há mais de vinte anos, Geraldo Carvalho. Uma reprodução desta foto está na página dedicada a Peter Tosh dentro do Massive Reggae, na área de Arquivo.

Por que Honorary Citizen?

Honorary Citizen (Cidadão Honorário), a faixa-título da caixa de Cds, é um dueto póstumo entre a voz de Peter Tosh e a de sua prima Pauline Morris, com a adição de uma nova letra por esta última. Pauline encabeça a Intel-Diplo, uma companhia baseada na cidade de Nova York, dedicada a perpetuar a memória de Peter. Pauline explica:

– Peter tinha uma amigo chamado Phil Pearson, que estava em Kingston com ele na época em que Peter estava finalizando o álbum 'No Nuclear War'. Um dia os dois estavam conversando enquanto Phil estava gravando uma fita e Peter começou a cantar: 'I'm an equal, lawful, upright, honorary citizen'. Ele disse que este seria o seu próximo projeto. Mais tarde Phil me deu uma cópia da fita. Peter estava muito entusiasmado com a idéia de fazer esta música sobre o que ele achava merecer, que era respeito. Eu sabia pelo que ele havia passado em sua vida. Ele havia feito tanto pelos oprimidos, e, cada vez que saía em público, ele sabia que podia ser morto a qualquer momento. Mas ele sentia que era seu dever fazer isso por todos os oprimidos de todo o mundo.

Quando começamos os estágios finais de compilação desta coleção em junho de 1996, ainda estava tentando elaborar um título para o projeto. Então isso veio a mim enquanto estava na cama, uma manhã: 'Meu Deus! Tinha as palavras bem na minha frente–Honorary Citizen!'. Então decidi que iria finalizar a letra para ele. Para mim, não teria tanto significado para ele se fosse uma canção que ele mesmo fizesse para si. Seria melhor se fosse feita por outra pessoa. Nós a gravamos no estúdio River Sound, em Nova York. Eu fiz a primeira voz e sobrepus os backing vocals com mais duas cantoras, Shacti Singh e Sisandra Lewis. Gary Katz foi o produtor, juntamente comigo e Peter Tulloch, Horace James e Karl Wright da produtora Eviction Street. É um tributo a Peter vindo de mim e de todas as pessoas que o amaram, porque isto é o que ele realmente foi, um honorário, e honorável, cidadão".

Trecho das notas da caixa de CD Honorary Citizen, escrita por Roger Steffens e Leroy Jodie Pierson.

1 - nota do Trad. - coleção de discos, fitas, livros e incontáveis peças relativas ao reggae mantidas por Steffens.

2- nota do Trad. - uma alusão a 'L.A.', sigla de Los Angeles.



 

 

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