morte do imperador da
Etiópia, Hailé Selassié I (foto ao lado),
em 27 de agosto de 1975, parecia ser o golpe
fatal no movimento rastafari. Para os rastas, ele era a encarnação
de Deus, ou Jah (1) , e deveria conduzir
os negros do mundo inteiro `a redenção e `a vitória
na luta contra a Babilônia(2). No
entanto, poucos meses depois, estourava nas paradas jamaicanas a canção
de Bob Marley que dá nome a esta página, contragolpeando
com estes versos:"Os imbecis dizem no seu coração
/ Rasta, o teu Deus está morto / Mas nós sabemos / Os
dreads (3) serão dreads hoje e sempre
/ Jah está vivo". A profecia de Bob Marley estava certa.
De lá para cá,
os veneráveis mestres do reggae nunca deixaram de disparar os
seus petardos sonoros contra as injustiças do Sistema Babilônico.
Depois de um certo recuo do reggae de inspiração rasta
nos anos 80, as vibrações de Jah estão voltando
a ganhar força no reggae das novas gerações. Os
rastafaris mantêm viva a sua fé e continuam sua batalha
incansável em defesa da justiça social e da igualdade
de direitos, não só na música, mas também
em outros campos. Espalhados por vários lugares do mundo (Jamaica,
EUA, Inglaterra , África, Japão, Nova Zelândia,
Austrália etc.), os rastas organizam eventos internacionais,
ligam-se na Internet (para conferir é só pesquisar a palavra
"rastafari") e mantêm uma intensa atividade editorial,
com a publicação de revistas, jornais, panfletos e livros
de circulação mundial. Vale a pena dar um passeio pela
história e pelas idéias do movimento rastafari.
Origens
O
Rastafarianismo não surgiu na Jamaica por acaso. Uma longa história
de resistência e rebeldia preparou o seu caminho. Uma história
que começa com o episódio da revolta dos Maroons (uma
quilombo bem sucedido, formado por escravos fugitivos que resistiram
por mais de 80 anos ao exército inglês e se tornaram independentes
do governo colonial) e que avança até o fenômeno
rude boy (jovens rebeldes e violentos que habitavam os bairros de lata
de Kingston nos anos 60), passando por diversas rebeliões de
escravos e ex-escravos. As duas maiores aconteceram no século
passado, lideradas por Sam Sharpe e Paul Bogle, dois lendários
pastores da "Native Baptist Church", uma igreja protestante
jamaicana que teve um importante papel como veículo de expressão
para o sentimento de revolta dos negros. Um dos capítulos decisivos
dessa história é a trajetória de Marcus Garvey,
um jamaicano descendente dos Maroons, que se tornou famoso como líder
do movimento negro nos EUA e na Jamaica do início do século.
Entre outras realizações, ele criou a "Universal
Negro Improvement Association" (UNIA), o jornal "Negro World",
a companhia de navegação "Black Star Line" (
que tinha como objetivo não declarado viabilizar o retorno dos
negros das Américas para o continente africano), e exerceu uma
importante influência nos movimentos, que, mais tarde, libertaram
a Africa do domínio colonial europeu. As idéias de Marcus
Garvey encontraram eco entre os líderes religiosos da Jamaica
e ele ganhou fama de profeta. Sua pregação combinou-se
a uma interpretação livre da Bíblia, especialmente
do Velho Testamento. Garvey e seus seguidores identificavam-se com a
história das tribos perdidas de Israel, vendidas aos senhores
de escravos da Babilônia. Essa metáfora inicial gerou uma
série de imagens simbólicas que se tornaram constantes na tradição
oral dos rastas: "Babilônia", "Zion
(4)", etc.

Surge Jah
Numa das profecias
atribuídas a Marcus Garvey, previa-se que um Rei Negro seria
coroado na África e que esse rei seria o líder que conduziria
os negros do mundo inteiro `a redenção. Quando,
em 1930, Ras (5) Tafari Makonnen foi proclamado
rei da Etiópia, adotando o pomposo título de "Rei
dos Reis, Senhor dos Senhores, Sua Majestade Imperial, Leão Conquistador
da Tribo de Judá, Eleito de Deus", os líderes religiosos
e seguidores de Garvey na Jamaica reconheceram nele o Rei Negro de que
o profeta havia falado. Ras Tafari, que adotou o nome de Haile Selassie
I (visto na foto acima com 6 anos e na foto abaixo, ao lado com seu
filho bebê), proclamava-se legítimo herdeiro da antiga
linhagem do Rei Salomão (que teve um filho com a rainha do reino
etíope de Sabá) e seria o messias que libertaria os negros
do mundo inteiro e os levaria de volta `a terra de seus pais. Mais do
que isso, ele passou a ser considerado por esses pregadores a própria
encarnação de Deus, que, segundo sua interpretação
da Bíblia, haveria de ser negro. Um trecho do Apocalipse de São
João foi invocado como confirmação do destino do
novo Rei da Etiópia: "Não chores! Eis aqui o Leão
da Tribo de Judá, a raiz de David, que pela sua vitória
alcançou o poder de abrir o livro e desatar os seus sete selos"
(5:5). Desde então, esses pregadores adotaram o nome de rastafari.
Passaram a dirigir a Hailé Selassié suas preces e a depositar
nele suas esperanças de libertação. Não
apenas a vida de Selassié, mas toda a história e a cultura
da Etiópia tornaram-se, a partir daí, uma constante fonte
de inspiração para os rastas. Para eles, é particularmente
importante o fato da Etiópia ser a única terra africana
que se manteve livre do jugo europeu, mesmo durante o apogeu do colonialismo
(no dia 1ª de março foi comemorado o centenário da
batalha de Adwa, em que o exército etíope do imperador
Menelik II rechaçou uma tentativa de invasão italiana).
No entanto, de 1935 a 1941, o país foi ocupado pelo exército
fascista de Mussolini. Os soldados de Selassié expulsaram-no
de seu território com a ajuda dos ingleses, em um episódio
cheio de significados que valeu ao imperador a fama de "Conquistador
do Fascismo", "Pacificador de Nações" e
"Defensor da Moralidade Internacional". Mais tarde enfrentou
uma tentativa de golpe mal sucedida que teve início quando ele
estava em visita oficial ao Brasil .
Desde o seu surgimento,
na década de trinta, o movimento rastafari cresceu lentamente.
Um dos marcos mais importantes dessa evolução foi a queda
da Pinnacle, uma comunidade rasta fundada nos anos quarenta pelo pregador
Leonard Howell. Em 1954 uma batida policial destruiu a comunidade e
os seguidores de Howell dispersaram-se pela ilha. Muitos foram para
os bairros de lata de Kingston, onde começaram a divulgar suas
idéias. Foi sobretudo a partir da década de sessenta que
o movimento ganhou maiores proporções. Um crescimento
que, em grande parte, deve-se ao reggae. Através de seus artistas,
que se tornaram também os grandes pregadores das idéias
do rastafarianismo, a religião conquistou seu lugar na cultura
da Jamaica,
onde, apesar do preconceito que ainda enfrentam, os rastas e seus dreadlocks
(6) se tornaram uma marca registrada.

Batalha de Adwa - Pintura etíope do sec. XIX
Hoje
Quando Hailé
Selassié morreu, o reggae já havia espalhado as sementes
do rastafarianismo pelos quatros cantos do planeta. Não era mais
possível deter sua mensagem, que, embalada pela música
poderosa de Bob Marley, tinha ganhado força. Talvez porque as
idéias, crenças e atitudes dos rastas conseguem exprimir
uma série de sentimentos e desejos comuns `as comunidades negro-americanas
e a todos os explorados pelo implacável sistema imposto pelo
primeiro mundo. A narrativa bíblica da procura pela terra prometida
dá aos negros das Américas uma forma alternativa de conhecimento
de sua história. Uma interpretação própria
de seu destino que aponta as verdadeiras causas das adversidades (o
colonialismo, a escravidão etc) e um caminho para a redenção,
o repatriamento para o continente africano. Este projeto não
é apenas uma utopia política. Através dele os rastas
manifestam de forma simbólica o sentimento de que a comunidade
negro-americana não está integrada no ambiente em que
vive. Manifestam também o desejo de construir uma sociedade justa
(não necessariamente na Africa), onde o negro e sua herança
cultural encontrem um lugar digno.

Nesse contexto, o lugar ocupado
por Hailé Selassié é fundamental. A idéia
de um rei negro para o povo negro encarna um desejo legítimo
de autodeterminação. A história da sua dinastia
funciona como lembrança de um passado de glórias que se
oferece como alternativa `as adversidades do presente. A figura de Hailé
Selassié estabelece uma ligação direta com esse
passado. O mesmo acontece com a Etiópia. A resistência
ao colonialismo europeu e sua milenar riqueza cultural fazem com que
essa nação seja importante referência para a recuperação
das raízes do homem negro. Enfim, através do mundo simbólico
do rastafarianismo o homem negro (e não apenas ele, mas todos
aqueles que de alguma forma identificam-se com a sua causa), pode ter
uma imagem positiva de si mesmo. Uma imagem baseada na valorização
de suas raízes, na consciência de sua história e
na determinação de tornar-se agente de seu próprio
destino. Essa talvez seja a grande força que mantém viva
a chama Rastafari. Jah Live!