Vejam
abaixo os videoclipes de algumas das canções citadas
neste artigo.
vida de Bob Marley tem sido contada, recontada e analisada em milhares
de teses, artigos, livros, CD-Roms e Páginas da Internet (inclusive
aqui no Massive). Novos relatos foram ou estão sendo lançados
e continuarão sendo ao longo dos anos, afinal ele é
um dos artistas mais influentes do século. Ao mesmo tempo novos
lançamentos na área musical têm trazido à
tona obras do mestre do reggae que apenas algumas pessoas haviam ouvido
até hoje. No entanto, enquanto sua vida continua sendo revolvida,
há pouca coisa escrita sobre a sua obra. Uma das exceções
foi o artigo que Michael Kuelker escreveu para edição
anual de 1999 da revista americana The Beat sobre Marley chamado "Bob
Marley à luz do Livro dos Provérbios", em que ele
traça as influências deste livro da Bíblia sobre
as letras das canções do Tuff Gong. Menos ainda foi
escrito sobre o lado romântico de Marley, o que é uma
pena, pois ele nos brindou com algumas das mais belas canções
de amor da história da música popular.
Parte do que foi publicado
sobre ele fala de sua atribulada vida amorosa, dos vários filhos
que deixou com diversas mulheres, da sua inconstância nos relacionamentos,
mas pouco foi dito sobre suas letras, que sempre louvaram, lamentaram
a falta ou relataram boas experiências com elas, jamais as desrespeitando,
como em alguns exemplares da música jamaicana atual. O lado
emotivo foi certamente importante na obra de Bob Marley, mas muitas
vezes passou desapercebido, ofuscado ora pelo perfil militante que
ele privilegiou nos últimos anos de vida, ora pelo perfil mulherengo
que alguns querem ressaltar em sua trajetória. E mesmo assim
foi a vertente responsável por alguns dos maiores sucessos
do rei do reggae, ajudando a tornar o ritmo de Jah popular em todo
o mundo.
Marley com uma de suas admiradoras (talvez Kate Simon, autora
da foto da capa da álbum 'Kaya') - Adrian Boot
No início da carreira
foi influenciado por grupos americanos como os Impressions (liderado
por Curtis Mayfield, recentemente falecido, que foi o autor de "Keep
on Moving", muitas vezes atribuída a Marley). Por isso
ele gravou, como um dos Wailers, diversos clássicos do cancioneiro
romântico, como 'Ten Commandments of Love', 'Teenager in Love'
e até 'And I love Her', dos Beatles. Marley também era
o que compunha a grande maioria das canções de amor
dos Wailers, como "Do you feel the same way", "Do you
remember" 'Do you remember the first time we met? / It
was a moment I never will forget... (Você se lembra da primeira
vez que nos encontramos? / Foi um momento que nunca esquecerei...)
, "I'm still waiting", a comovente "Wages of
Love", "There she goes" , "I Need You", "Diamond
Baby", "I Don't Need your Love", entre outras gravadas
para Coxsonne Dodd até 1967. Foi talvez a fase em que Bob deixou
que sua emoção transparecesse de forma mais explícita
nas gravações, coincidindo com seu romance e casamento
com Rita Marley, em 66. São faixas que vão do ska ao
rocksteady, acompanhando as tendências da música jamaicana
(que podem ser ouvidos em coletâneas como 'Birth of a legend'
[Columbia] e 'One Love' [Heartbeat]). Mas logo seriam os Wailers que
ditariam o ritmo na ilha.
Rita
Marley, oficialmente casada com Bob e mãe de três de
seus filhos, lançou recentemente o polêmico livro "No
Woman No Cry", onde detalha seu relacionamento com Marley
Enquanto isso não
acontecia, eles continuavam em sua busca pelo reconhecimento, gravando
no final dos anos 60 com vários produtores, como Leslie Kong,
Danny Sims e Lee Perry. Com eles Marley exacerbou o seu lado conquistador,
gravando faixas que traziam insinuações sexuais, como
"Stir it Up", "Do it Twice", "Try me",
"No Water", entre outras. Logo o som dos Wailers estaria
maduro para o mercado internacional e este começou a ser ganho
a partir da entrada do grupo na gravadora inglesa Island.
O romantismo ficou em
segundo plano e os quatro primeiros álbuns dos Wailers para
a Island destacaram a face militante e a espiritual do grupo. Era justamente
na conjugação destes dois lados que estava a originalidade
da banda e foi por isso também que estes aspectos de sua música
foram privilegiados, apesar da vida amorosa de Marley continuar movimentada.
Nos quatro primeiros álbuns sob este selo, 'Catch a Fire',
'Burning', 'Natty Dread' e 'Rastaman Vibration' (neste dois últimos
sem Bunny Wailer e Peter Tosh), apenas a regravação
de 'Stir it Up' e 'Baby we've got a Date' tocavam no tema amoroso.
Tema que, não por acaso, voltaria com força apenas nos
dois discos lançados após o atentado que quase tirou
a vida de Marley em 76, que foram 'Exodus' e 'Kaya'.
'Exodus',
eleito pela revista Time como o álbum do século (ver
Tchaka-tchaka) ainda traz as sequelas do
atentado, mas também o que um dos biógrafos de Marley,
o jornalista Stephen Davis (que também escreveu o clássico
'Reggae Bloodlines', ver em Biblioteca),
considerou como 'as canções de amor mais passionais
e mais profundamente sentidas que ele jamais escreveu', o que aquele
autor considerou como um reflexo de seu caso com a modelo jamaicana
Cindy Breakspeare. 'Waiting in Vain' (que muitos acham ter sido dirigido
a ela) retoma o tema da espera também explorado em 'I'm still
waiting' (uma canção da primeira fase dos Wailers).
'Turn your lights down low', uma canção pouco conhecida
do repertório de Bob (que recentemente ganhou uma bela versão
cantada por sua nora Lauryn Hill), são de uma rara inspiração,
traduzindo um momento de bonança emotiva.
Cindy Breakspeare foi eleita
Miss Mundo em 1976 e é por muitos considerada como o grande
amor de Marley, relacionamento que gerou o hoje também cantor
e DJ Demian Marley
Em 'Kaya' predomina a
postura de celebração da vida, com gravações
extremamente relaxadas que contam as pequenas alegrias do cotidiano,
como 'Easy Skanking', que abre o álbum. Outras faixas como
'Sun is Shining', uma regravação de uma de suas colaborações
com Lee Perry (ver Dread Times), a própria
faixa-título e, naturalmente, as faixas de cunho romântico,
vão na mesma direção. 'Kaya' traz a mais conhecida
canção de amor de Bob, "Is This Love", onde
Marley 'põe as cartas na mesa' e se declara para sua amada,
dizendo querer morar com ela, ser legal com ela, enfim, tudo o que
uma mulher gostaria de ouvir em uma situação como essa.
Por outro lado também traz 'She's Gone', canção
que é uma espécie de continuação da antiga
'There she goes', onde esta narrava a partida da mulher amada, enquanto
que naquela o amante abandonado se lamenta por tê-la deixado
partir. Aliás o número razoável de músicas
de 'dor-de-cotovelo' na obra de Marley parece sugerir que ele também
sofreu nas mãos de suas mulheres. Outra regravação
da época de Perry, 'Satisfy my soul', talvez seja a que melhor
traduz o espírito do álbum, onde Marley pede à
mulher que não o abandone porque ela satisfaz a sua alma, evocando
uma das grandes paixões do cotidiano dos jamaicanos, a corrida
de cavalos, ao cantar que ela o faz se sentir como um vencedor da
'sweep-stake', que é uma modalidade de competição
eqüina.
Bob
Marley fez canções sobre todos os sentimentos envolvidos
nos relacionamentos amorosos, como desejo, ternura, abandono, desespero,
fossa, alegria, companheirismo
Mas o destino iria intervir
novamente e a descoberta da doença que acabaria por levar Marley
para Zion, em 81, fez com que ele mais uma vez se concentrasse na
mensagem político-religiosa, pois sentia que tinha pouco tempo
e queria fazer as coisas acontecerem. E foi justamente o que ele fez
ao compor músicas como "Zimbabwe", responsável
pela inspiração revolucionária dos combatentes
daquele país em sua luta contra o regime de dominação
dos colonizadores de ingleses (e alguns rumores dizem que ele teria
inclusive financiado a compra de armas para eles, o que não
é de todo improvável). Assim, os seus últimos
álbuns, que são 'Survival', 'Uprising' e ''Confrontation',
passam ao largo do romantismo (a faixa 'Could you be Loved', apesar
do título, é mais um apelo para as pessoas lutarem por
suas vidas, do que uma canção de amor).
Recentemente o documentário
"Rebel Music" abordou com mais profundidade o papel das
mulheres na vida de Marley, com depoimentos de Esther Anderson, contratada
pela Island para trabalhar com Marley e que acabou tendo um caso com
ele (ela diz ter inclusive sugerido versos para músicas como
"I Shot the Sheriff") e Cindy Breakspeare. Rita esclarece
que nunca lidou com naturalidade com a questão mas que hoje
aceita os filhos que Marley teve com outras mulheres como se fossem
seus.
O amor e o sexo são
temas vitais, cantados por Marley enquanto ele se sentia pleno de
vida e sentimento. Que sua produção romântica
tenha sido negligenciada em seus últimos anos foi uma indicação
clara de sua partida iminente. Talvez alguns entendam que este foi
um tema menor em sua carreira, mas um estudo de maior fôlego
sobre sua vida e obra pode mostrar que este era um lado importante
e não marginal da sua personalidade. Uma faceta que ele só
deixou de traduzir em suas canções quando precisou marcar
uma imagem nítida para o público fora da Jamaica e quando
sua vitalidade já estava sendo minada pelo câncer. Negar
o Bob Marley terno, o Bob Marley amoroso é negar a sua vida,
é reduzí-lo ao estereótipo, é terraplanar
a personalidade complexa de um ser humano como nós. Falar do
Bob Marley sentimental é falar deste lado humano tantas vezes
ofuscado por uma imagem onipresente que foi construída em parte
pela mídia e em parte por ele mesmo. Um estudo mais aprofundado
sobre este assunto poderá revelar nuances desconhecidas do
homem e do artista Bob Marley.
Fontes para este artigo: Revista
The Beat , Bob Marley (Stephen Davis), Documentário "Rebel
Music"