Direção: Jim Lewis

Lançado no Brasil (talvez ilegalmente) com o nome de "One Love Peace Concert" e ainda dando sopa em algumas locadoras, este documentário faz um precioso registro da época imediatamente posterior `a retratada no livro "Reggae Bloodlines" (ver Biblioteca). O grande atrativo deste filme é certamente o famoso concerto pela paz que aconteceu em 12 de abril de 1978 e por isso a distribuidora brasileira deu o seu nome para toda a fita. Este concerto foi promovido pelas duas maiores gangs da ilha, cada qual ligada a um dos dois partidos jamaicanos, o PNP (People's National Party, de centro-esquerda) e o JLP (Jamaica Labour Party, de centro-direita), que estavam infernizando a vida do povo da ilha com uma violenta guerra. A idéia era conseguir uma trégua que permitisse uma saída negociada para a crise em que o país estava. Participaram desse grande show os maiores nomes do reggae daquela época: Bob Marley, Peter Tosh, Jacob Miller e Inner Circle, entre outros.

Ofã brasileiro de Marley, levado pelo título dado por aqui aesperar por um registro de todo o "One Love Peace Concert",tem logo uma surpresa quando descobre que, na verdade, o filmemostra vários shows diferentes. E também que, para dar algumacoesão, as apresentações são interligadas por um curioso depoimento de um jamaicano que poderia ser considerado o estereótipo do rasta,sempre com um cigarro de ganja na mão e um discurso religiosoe engajado pronto para ser mandado. O título enganoso da ediçãobrasileira pode ser motivo de aborrecimento para alguns, masbasta ouvir um pouco o material apresentado para entender quese trata de reggae de primeira, uma oportunidade única paraver artistas como U Roy, Althea and Donna, Dennis Brown e JacobMiller no auge da sua forma. Pois é justamente com eles que ofilme começa, em um pequeno festival diurno na cidade de Savanna-la-mar.As vibrações do show são de uma alegria e leveza surpreendentes,se lembrarmos que a ilha vivia dias de chumbo, com as cidadessob toque de recolher por causa da guerra das gangs.

Outra preciosidade é o show de Peter Tosh (foto) em Trelawny Beach, acompanhado por Sly & Robbie e amigos. A agressividade de Tosh embalada pela batida certeira da dupla do baixo e bateria ajuda a entender um pouco melhor a sua sofrida trajetória e a sua obra. Dias depois, mais uma vez no "One Love Peace Concert" (trecho que infelizmente não consta neste vídeo), Tosh cantaria "Equal Rights" para os dois líderes políticos da ilha. Naquela ocasião ele faria um discurso inflamado que foi interpretado pela polícia de Michael Manley como uma afronta, punida com uma surra que só não matou o homem perigoso do reggae porque Jah queria que ele ficasse entre nós por mais algum tempo.

Então finalmente começa o show tão esperado, que dá nome à versão brasileira do filme. O "One Love Peace Concert" aconteceu em um estádio de Kingston completamente lotado. Era a primeira vez que Bob Marley tocava na ilha desde o "Smile Jamaica Concert", acontecido dois anos antes, logo após o atentado que quase tirou a vida do rei do reggae. Havia a expectativa de que os líderes dos dois partidos rivais aparecessem e dessem algum sinal de que a guerra acabaria. Mas ninguém contava que, no meio da canção "Jammin'", Marley chamaria os dois ao palco e os faria se cumprimentar por cima de sua cabeça. Foi uma cena marcante e muito estranha. Os dois políticos estavam bastante constrangidos, mas Marley parecia não se importar. Neville Garrick, amigo e designer responsável pela maioria das capas dos discos de Bob diria: "Parecia Jesus Cristo entre os dois ladrões"... Foi nessa apresentação que Marley cantou "War" pela primeira vez em público.

A trégua acertada nesse show não duraria muito (boatos diziam que o JLP havia conseguido contrabandear armas escondidas debaixo do equipamento de iluminação trazido dos Estados Unidos), mas a iniciativa provou que a música era um elemento importante no jogo político jamaicano e "Heartland Reggae" consegue captar boa parte dessa atmosfera eletrizante.

Leo Vidigal